04 novembro 2009

A CIDADANIA FICOU DO LADO DE FORA



Semana passada, ao chegar à Cidade Judiciária em Campinas, me deparei com uma cena inusitada: uma grande fila de pessoas do lado de fora dos portões. Não entendi, pois para quem não conhece, a Cidade Judiciária fica em um amplo terreno, por enquanto com espaço de sobra. Fui me informar sobre o que aquelas pessoas estavam aguardando debaixo daquele sol escaldante – não que ficar em filas seja novidade para o povo brasileiro, principalmente para os mais pobres – pois naquele lugar ainda não tinha visto filas.

Uma servidora me disse que eram pessoas aguardando senhas para conseguirem atendimento da Defensoria Pública do Estado. Ao me informar com outros servidores, soube que àquelas pessoas era proibido aguardar dentro do terreno da Cidade Judiciária.

O Estado de São Paulo, vergonhosamente, foi o penúltimo Estado do país a instituir a Defensoria Pública. Porém a jovem Defensoria paulista nasceu de uma ânsia de diversos movimentos populares, o que imprimiu a ela um caráter democrático. Fato que confirma isso são as duas conferências realizadas para que a sociedade civil participasse dos rumos da Defensoria.

O acesso à justiça é uma garantia constitucional e elemento fundamental da cidadania. Porém isso é constantemente desrespeitado com um Judiciário moroso, distante da realidade social e muito caro, o que dá ampla vantagem a quem tem dinheiro para enfrentar um processo. Por isso uma Defensoria forte e atuante é fundamental para a efetividade do acesso à Justiça.

Infelizmente, ao ver aquelas pessoas sequer podendo aguardar uma senha de atendimento debaixo das várias árvores que existem na Cidade Judiciária, sem poderem ir ao banheiro, pois poderiam perder o lugar para conseguir uma senha, percebo que talvez não estejamos indo necessariamente para o caminho correto. Em tempos em que se aplaudem iniciativas milionárias como pulseiras high tech para presos, caveirões e cada vez mais repressão, como por exemplo, a “higienização social” na região central de Campinas, creio que devamos olhar com atenção para isso. Talvez estejamos em um caminho cada vez mais punitivo e cada vez menos de garantia de direitos, direitos esses que seriam muito mais eficazes no combate à violência.

Curiosamente, está gravado nas paredes dessa mesma Cidade Judiciária, paredes que essas pessoas não podem se encostar para aguardar um possível atendimento (possível, pois às vezes acabam as senhas) um lindo poema do alemão Bertold Brecht que se chama “Pão do Povo”. Assim diz o poeta: “A justiça é o pão do povo. / Às vezes bastante, às vezes pouca. / Às vezes de gosto bom, às vezes de gosto ruim. / Quando o pão é pouco, há fome. / Quando o pão é ruim, há descontentamento.” Aquelas pessoas não têm acesso a um bom “pão” e sequer podem aguardar sentadas na suposta “padaria”.

Fiquei a pensar quando é que as pessoas que estavam na fila iriam se rebelar com a situação de não poderem sequer aguardar dentro da Cidade Judiciária, então como as paredes me fizeram lembrar de Brecht, me veio à cabeça um outro poema também de sua autoria – peço licença aos leitores para reproduzí-lo na íntegra –  que se chama “Quem se defende”, onde o poeta diz: “Quem se defende porque lhe tiram o ar / Ao lhe apertar a garganta, para este há um parágrafo / Que diz: ele agiu em legítima defesa. Mas / O mesmo parágrafo silencia / Quando vocês se defendem porque lhes tiram o pão. / E no entanto morre quem não come, e quem não come / o suficiente / Morre lentamente. Durante os anos todos em que morre / Não lhe é permitido se defender.”

Sinceramente, espero que a Diretoria da Cidade Judiciária juntamente com a Defensoria Pública do Estado possam solucionar esse problema que tem ferido de morte a dignidade daquelas pessoas que estão alí buscando Justiça e têm o direito a um tratamento digno. Além disso, devemos continuar exigindo das autoridades mais recursos para órgãos como a Defensoria que são fundamentais ao acesso à justiça e a construção de uma sociedade justa. E por falar em exigir das autoridades, não poderia deixar de encerrar este artigo com o poeta alemão que no mesmo poema “Pão do Povo” nos dá uma lição de quem será o construtor dessa sociedade justa: “Sendo o pão da justiça tão importante, / Quem amigos, deve prepará-lo? / Quem prepara o outro pão? / Assim como o outro pão, / Deve o pão da justiça ser preparado pelo povo. / Bastante, saudável, diário"

Rafael Moya

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