12 agosto 2014

CONGEAPA E O FUTURO DA APA

CONGEAPA E O FUTURO DA APA


Desde 2001, Campinas conta com uma Área de Proteção Ambiental, a chamada APA. A lei foi sancionada pelo prefeito assassinado de Campinas, Toninho. Essa área corresponde a mais de 28% do território do município e abrange a os distritos de Sousas e Joaquim Egídio e toda a área rural ao norte do município nas divisas com Jaguariúna, Pedreira, Morungaba e Valinhos. Dentro da APA encontra-se o Rio Atibaia, importante rio que contribui para o sistema de abastecimento de água do Cantareira. Assim, uma área de suma importância não só para Campinas, mas para todo o Estado de São Paulo.

Dada sua importância, a lei também criou um conselho gestor da APA, o CONGEAPA, que também foi regulamentado por um decreto. Essas legislações garantem a este conselho “caráter consultivo, deliberativo e fiscalizador e tem por objetivo promover a participação autônoma e organizada da comunidade no processo de definições da política de desenvolvimento local e no acompanhamento de sua execução...”. Dessa maneira fica evidente a importância deste conselho na dinâmica, não apenas da APA, mas de toda a região.

Nos últimos tempos esse conselho enfrenta inúmeros problemas de ordem jurídica e organizativa, basicamente por tentativas reiteradas da prefeitura (e suas diversas administrações que passaram por lá nos últimos anos) em tentar controlar e anular as atividades do CONGEAPA. O último ataque ao conselho foi quando, de maneira evidentemente absurda e ilegal, a SANASA tentou participar do conselho como entidade do terceiro setor. Sim, como entidade da sociedade civil! Mais uma vez o Judiciário teve que intervir e o prefeito fez um decreto às pressas para resolver a questão, desfazendo o absurdo e destravando o conselho.

Dada a importância da APA e do CONGEAPA, considerando meu compromisso com as questões ambientais, não só da minha cidade, mas de toda a região, me candidatei ao conselho e agora me candidato à presidência do mesmo na eleição que ocorrerá dia 12 deste mês. A ideia é imprimir a este conselho um caráter de independência e transparência ao CONGEAPA, nos moldes que realizei na presidência do COMDEMA. Garantir seu funcionamento dentro da legalidade, moralidade e que suas atividades possam transcorrer de maneira livre e democrática para que todas as opiniões e visões de como a APA deva se desenvolver sejam discutidas abertamente, sempre defendendo o desenvolvimento sustentável e uso racional e duradouro dos recursos naturais, garantindo o que dispõe no art. 2º da lei que criou a APA para a “a conservação do patrimônio natural, cultural e arquitetônico da região, visando a melhoria da qualidade de vida da população e a proteção dos ecossistemas regionais; a proteção dos mananciais hídricos utilizados ou com possibilidade de utilização para abastecimento público, notadamente as bacias de contribuição dos Rios Atibaia e Jaguari; o controle das pressões urbanizadoras e das atividades agrícolas e industriais, compatibilizando as atividades econômicas e sociais com a conservação dos recursos naturais, com base no desenvolvimento sustentável.”.

Ocorre que, mais uma vez, a prefeitura volta à carga contra a autonomia do CONGEAPA, ao apresentar como candidato a presidência o representante da SANASA. O Executivo municipal deve participar e contribuir com o conselho, mas não pode controlá-lo, da mesma maneira o setor empresarial com interesses na região. O conselho deve ser um espaço do encontro e da discussão de ideias para atingir os objetivos da APA. Porém, o conselho é, entre outras atribuições, um órgão de fiscalização, como dispõe a legislação. Ora, como fazer uma fiscalização eficiente das ações, seja do poder público, seja do setor empresarial com os mesmos detendo o controle das pautas e encaminhamentos do conselho? Pode ser inocência ou má-fé acreditar que isso é possível com esses setores controlando o CONGEAPA ou qualquer conselho. 

Infelizmente a prefeitura tem partidarizado todas as discussões a que se referem o tema. Qualquer crítica ou ponderação às políticas implementadas é tratado pela atual gestão como “coisa da oposição” ou buscam a desqualificação de pessoas e entidades que querem o uso racional dos nossos recursos naturais já escassos, como é o caso da nossa água. A única partidarização que podemos admitir nessas discussões é das pessoas que tomam partido do desenvolvimento sustentável, pois os fatos mostram que também há os filiados ao partido da depredação da APA e sua transformação em um grande mosaico de condomínios fechados trazendo inúmeros impactos a nossa qualidade de vida.

Rafael Moya
Advogado, mestre em engenharia urbana e ex-presidente do COMDEMA e conselheiro do CONGEAPA.

02 junho 2014

CRISE DA ÁGUA OU CRISE DO MODELO?

Segue meu artigo publicado no jornal O Metropolitano de 31/05/2014, sobre a crise de abastecimento de água no estado de São Paulo.

Rafael Moya

www,ometropolitanocampinas.com.br

CRISE DA ÁGUA OU CRISE DO MODELO?



A situação crítica do abastecimento de água nas regiões metropolitanas de São Paulo e de Campinas já havia sido antecipada há pelo menos uma década por técnicos da área e nos planos elaborados para os recursos hídricos regionais. Não é de hoje os sinais da impossibilidade de se manter o suprimento de quase a metade da metrópole de São Paulo, com a água retirada da região de Campinas, via transposição pelo Sistema Cantareira, considerando o aumento da demanda populacional, industrial e agrícola dessas regiões.

Durante o processo da renovação da outorga do sistema Cantareira, no qual se renovaria a concessão da captação de água, diversos prefeitos da região de Campinas, já haviam questionado os métodos autoritários com que o Governo Alckmin havia conduzido o processo. Porém, nada mais além de bravatas foram feitas. Poucos acreditavam que a situação se tornaria tão dramática.

Como é de costume, a população não foi chamada a participar das discussões sobre a renovação da outorga do sistema Cantareira, nenhum conselho foi ouvido e até o Comitê de Bacias (órgão oficial e influente) achou insuficiente sua participação!

A situação se torna mais dramática quando vemos que as pessoas responsáveis para resolver o problema são as pessoas que criaram esta situação caótica e, aparentemente, não fizeram autocrítica, pois continuam a culpar a falta de chuva (que é um fato) e pedir que as pessoas economizem água, chegando até a adoção de medidas de multa para quem lavar a calçada (medida totalmente irrelevante). Diversos estudos, em todo o mundo, apontam como as maiores ameaças à água a expansão urbana, industrial e agrícola, as intervenções nos cursos d’água (canalizações, transposição de bacias, barragens e desvios), a perda de áreas úmidas e o desmatamento, além do aumento do consumo de água e da poluição hídrica.

O consumo doméstico de água corresponde a cerca de 30% do uso da água. Ou seja, ao pedir que as pessoas economizem água em casa, e é apenas essa medida que vêm sendo tomada, está-se excluindo da solução os 70% do consumo que advém da indústria e da agricultura. Como se não bastasse, o maior desperdício é do próprio Estado. No ano passado, a Sabesp (Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo) produziu mais de 3 bilhões de m³ de água, segundo o "Relatório de Sustentabilidade 2013", disponível no site da empresa. De acordo com a companhia, 20,3% dessa água deixaram de ser consumidos no ano passado, o que corresponde a 619,7 milhões de m³ de água perdidos. Essa quantidade seria suficiente para abastecer a cidade de São Paulo durante quase quatro meses. O consumo médio mensal de água na capital é de 159,5 milhões de m³. A Sabesp explica que essa água foi perdida por causa de vazamentos entre as estações de tratamento e as residências dos consumidores. "Esses vazamentos ocorrem, principalmente, devido ao envelhecimento das tubulações e às elevadas pressões", justificaram. Em rápido cálculo, concluímos que toda a água que foi desperdiçada ao longo de 2013 com vazamentos no Estado de São Paulo daria para abastecer a capital paulista durante quase quatro meses.

O que temos visto é que o Governo Federal, Estadual e praticamente todos os municipais nada têm feito para conter e solucionar tamanha crise. Pelo contrário, quando continuamos a presenciar uma expansão urbana desenfreada (se não tivéssemos 20 milhões de pessoas concentradas no mesmo local e utilizando da mesma água talvez o cenário fosse menos drástico), incentivo e negligência com o desmatamento e a destruição de nascentes (para se ter uma ideia, a ampliação do aeroporto de Viracopos aterrará cerca de vinte nascentes), poluição dos cursos d´águas etc. E isso tudo sendo tratado como “desenvolvimento”. É hora da sociedade civil agir, 2014 é ano de eleições. Será que não seria o caso de deixarmos o pessimismo e a mera reclamação de lado e começarmos a cobrar soluções e propostas que invertam esta lógica? Infelizmente nem podemos dizer que a água está batendo na bunda, pois ela acabou.

Rafael Moya, advogado, mestre em engenharia urbana e ex-presidente do Conselho de Meio Ambiente de Campinas.

12 março 2014

Por uma teoria de governo

Vladimir Safatle sempre certeiro.

Abraços,

Rafael Moya


Por uma teoria de governo

Uma transformação global não inventará novas práticas, mas vai desenvolver aquelas que antes não germinaram
por Vladimir Safatle — publicado 10/03/2014 05:45 - Publicado em Carta Capital


O que pode significar governar?  Esta é uma questão que ganhará cada vez mais importância nos próximos anos nos debates políticos à esquerda. Poderíamos tentar rechaçá-la, afirmar não caber a uma esquerda renovada pautar suas ações políticas por uma teoria do governo, pois isto poderia limitar sua força crítica, deixar-se captar mais facilmente pela lógica hegemônica da gestão do capitalismo.

Nesse sentido, poderíamos seguir Michel Foucault e dizer que, no fundo, nunca houve outra prática de governo na modernidade a não ser o liberalismo. E sua versão neoliberal seria suficientemente flexível para incorporar, sem risco à perpetuação do capitalismo, algumas ações pontuais ligadas à melhora da qualidade de vida e à diminuição da pauperização dos mais desfavorecidos. Já Robert Kurz dizia que o capitalismo não tinha problema em ora apelar para versões mais estatizantes, ora valer-se de versões mais liberais. O embate entre estatismo e laissez-faire não era exterior à dinâmica interna do desenvolvimento do capitalismo. O mesmo valeria, paradoxalmente, para o problema do governo na era neoliberal.

Uma perspectiva dessa natureza seria obrigada, no entanto, a afundar-se no impasse de quem acredita que as discussões sobre governo só poderiam aparecer depois de uma transformação global nas relações de poder ocorrer ou, ainda, só no interior de um devir revolucionário global. Assim, quando novos atores políticos dessem o tom de megamovimentos de contestação, poderíamos começar a pensar no que fazer no dia seguinte.

Há vários problemas aqui. O mais grave consiste em acreditar que a transformação política opera no interior de um campo onde há só uma tendência dominante. Como mostrou, porém, o último grande movimento de massa que conhecemos, as revoltas árabes (e, diga-se de passagem, a revolta egípcia foi simplesmente a maior manifestação de massa da história), uma transformação global é um campo de combate no interior do qual um embate ocorre a respeito de quem poderá melhor transformar demandas em resultados. O silêncio a respeito do que deve ser o governo apenas fortalece a voz daqueles que, fora da esquerda, apresentam-se como dispostos a governar. Não basta conseguir colocar 40 milhões de indivíduos nas ruas.

Uma transformação global não inventará práticas de governo completamente novas. Ela desenvolverá o que muitas vezes apareceu em germe, mas não pode frutificar por ter nascido em solo árido, como um ponto fora da curva ou em uma situação que não conseguiu durar. Aumentar o número de pontos fora da curva é uma boa forma de dar mais força a um futuro que será atacado por todos os lados, que terá a fragilidade do inesperado e do improvável.

Melhor seria a esquerda procurar esses pontos fora da curva, ter a humildade de se interessar pelo que ocorre e de imaginar como tais acontecimentos podem produzir modelos. Falar mais sobre a experiência da democracia direta proposta pela Constituição islandesa, mais sobre os cordões industriais no Chile de Allende, mais sobre a política de drogas do Uruguai e menos sobre como a tarifa zero, se implementada, seria mais uma astúcia para reforçar a produtividade no interior do neoliberalismo.

Nesse contexto, vale lembrar uma boa colocação de Ernesto Laclau. Ninguém sai ou um dia saiu às ruas para derrubar o capitalismo. Mesmo nos estertores da Revolução Soviética, o povo saiu por desejar a realização de demandas muito concretas: paz e pão. Se não houvesse aqueles capazes de convencer a população de serem aptos a fornecer mais do que revolta, nada teria ocorrido. Mas estes não necessariamente forneceram a promessa de saber dirigir. Eles poderiam, ao contrário, fornecer simplesmente a consciência de como assegurar as condições para o aparecimento de boas respostas a respeito de problemas bastante concretos. Ninguém hoje espera uma classe que teria boas respostas para problemas que elas nem conhecem direito, que nem os vivenciam no dia a dia. Espera-se a capacidade de garantir, àqueles que sofrem os problemas, a certeza de que serão eles a produzir as respostas. Pois não se trata mais de compreender “governar” como “dirigir”, mas como “garantir as condições para que as pessoas dirijam a si mesmas”.

05 março 2014

Escutem o louco

Artigo demolidor de Eliane Brum.

Abraços,

Rafael Moya


Escutem o louco


O homem que empurrou uma passageira nos trilhos do metrô desnuda o momento perturbador vivido pelo Brasil



Publicado em: http://brasil.elpais.com/brasil/2014/03/03/opinion/1393852189_834821.html


De repente, o taxista aumentou o som da pequena TV acoplada no console do carro. No banco de trás, eu parei de ler e afinei os ouvidos. Era meio-dia da sexta-feira de Carnaval (28/2). O homem que, dias antes, havia empurrado uma passageira nos trilhos do metrô de São Paulo tinha sido preso. A mulher teve o braço amputado. O agressor sofre de esquizofrenia, destacou o apresentador de TV. “Louco”, decodificou de imediato o taxista. Doença triste, disse o apresentador na TV. Ao ser preso, continuou o apresentador, o agressor afirmou que a empurrou porque sentiu raiva. Essa parte o taxista não escutou. Algo lá fora o havia perturbado. Colou a mão na buzina, abriu a janela do carro e xingou o motorista ao lado, que tentava mudar de pista. Perdigotos saltavam da sua boca enquanto ele empunhava o dedo médio com uma mão que deveria estar no volante. Fechou a janela, para não perder a temperatura do ar-condicionado, e voltou a falar comigo. “A polícia tem de tirar os loucos da rua”. A quem ele se refere, pensei eu, confusa, olhando para fora, para dentro. Era ao louco do metrô.

Há algo de trágico nos loucos. E não apenas o que é definido como loucura nessa época histórica. Há uma outra tragédia, que é a de não ser escutado. Sempre que alguém com um diagnóstico de doença mental comete um crime, a patologia é usada para anular as interrogações e esvaziar o discurso de sentido. A pessoa não é mais uma pessoa, com história e circunstâncias, na qual a doença é uma circunstância e uma parte da história, jamais o todo. A pessoa deixa de ser uma pessoa para ser uma doença. Se há um histórico, é o de sua ficha médica, marcada por internações e medicamentos – ou a falta de um e de outro. Esvaziada de sua humanidade, o que diz é automaticamente descartado como sem substância. A doença mental, ao substituir a pessoa, explica também o crime. E, se não há sujeito, não é preciso nem pensar sobre os significados do crime, nem sobre o que diz aquele que o cometeu.

Mas o que essa escolha – a de reduzir uma pessoa a uma patologia e a de anular os sentidos do seu discurso – diz da sociedade na qual foi forjado esse modo de olhar? Se Alessandro de Souza Xavier, 33 anos, o homem que na terça-feira (25/2) empurrou Maria da Conceição Oliveira, 28, no metrô, for escutado, há algo de particularmente perturbador na justificativa que confere ao seu ato. Alessandro diz: “Fizeram um mal pra mim, e eu descontei. Fiz porque estava nervoso com o pessoal do mundo.”

O louco não expressa apenas a sua loucura. Ele também denuncia a insanidade da sociedade em que vive
O que há de particularmente perturbador nessa fala é que, quando escutada, ela desnuda o atual momento do Brasil. Vale a pena lembrar que o louco é também aquele que diz explicitamente do seu mundo. Sem mediações, ao dizê-lo ele pode sacrificar a vida de outros, assim como a sua. Vale a pena lembrar ainda que o louco não expressa apenas a sua loucura. Ele denuncia também a insanidade da sociedade em que vive.

Ao interrogar sobre os sentidos do que Alessandro diz, quando explica por que empurrou Maria, é necessário olhar para os outros crimes que viraram notícia nos últimos dias. Nenhum deles, até agora, relacionado a doenças mentais. Torcedores do São Paulo bateram com barras de ferro em um torcedor do Santos que esperava o ônibus. Bateram nele até matá-lo. Ao deparar-se com blocos de Carnaval interrompendo o trânsito, na Vila Madalena, bairro de classe média de São Paulo, um homem acelerou o carro e feriu dez pessoas. Quem estava perto o arrancou do veículo e passou a agredi-lo. Quando ele conseguiu fugir, destruíram o carro. Um casal de lésbicas foi espancado ao sair de um bloco de Carnaval, no Rio. Uma delas teve a roupa arrancada. Apenas uma pessoa na multidão ao redor tentou ajudá-las. Em Franca, no interior de São Paulo, um adolescente correu atrás de um suspeito de assalto e lhe aplicou um golpe chamado de “mata-leão” (estrangulamento). O suspeito, de 22 anos, teve um infarto após ser imobilizado e morreu no hospital. Um morador de rua foi linchado em Sorocaba (SP) por ter pegado um xampu de um supermercado. Teve afundamento do crânio. No Rio, mais um adolescente foi amarrado e agredido depois de furtar um celular. Linchamentos eclodiram em todo o país depois do caso do garoto acorrentado com uma trava de bicicleta no Flamengo. Nas semanas anteriores, dois manifestantes acenderam um rojão num protesto no Rio, matando um cinegrafista. Na Baixada Fluminense, um homem executou um suspeito de assalto com três tiros, em plena rua, durante o dia, assistido por vários. Mais de 40 ônibus foram incendiados em São Paulo em 2014.

A lucidez do louco é a de não vestir como razão a nudez do seu ódio – ou do seu medo
O discurso do louco é encarado como uma afirmação (e confirmação) da sua loucura, o que é outra forma de não escutá-lo. No caso de Alessandro, uma das provas da loucura do louco teria sido ele dizer que jogou Maria nos trilhos do metrô por raiva e também por vingança. Explícito assim. Outra prova da loucura do louco revelou-se ao afirmar que não a conhecia, que a escolheu de forma aleatória. “Desconexo” – foi o adjetivo usado para definir o discurso de Alessandro. Sua vítima não era torcedora do Santos, não era lésbica, não tinha furtado um celular ou um xampu, as desrazões interpretadas como razões. Por que, então? O louco confessou: Maria não era Maria, já que não a conhecia nem sabia o seu nome, mas o “pessoal do mundo”. A lucidez do louco talvez seja a de não vestir como razão a nudez do seu ódio – ou a nudez do seu medo. Por isso também é louco.

Diante da violência que irrompe no Brasil em todos os espaços, talvez seja a hora de escutar o louco. Talvez o fato de ele atacar no metrô não seja um detalhe descartável, uma coincidência destituída de significado. No mesmo dia em que Alessandro foi preso, morreu no hospital Nivanilde de Silva Souza, aos 38 anos. No mesmo dia em que, na Estação da Sé, Alessandro empurrou Maria, na Estação da Luz um trem atingiu a cabeça de Nivanilde. Ela tinha dito a um estagiário da Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM) que estava grávida, o que lhe assegurava o direito a entrar no vagão especial. O estagiário disse a ela que teria de apresentar um documento comprovando a gestação. Os dois teriam se empurrado, seguranças deram voz de prisão à Nivanilde. Na confusão, ela teria caído na plataforma. O trem bateu na sua cabeça.

No início de fevereiro, a linha-3 vermelha do metrô parou por cinco horas depois da falha em uma porta na estação da Sé, a mesma em que Alessandro empurrou Maria. No verão paulistano mais quente desde 1943, o ar-condicionado foi desligado. Pessoas vagavam pelos túneis, algumas desmaiaram, grávidas e velhos esperaram dentro de vagões abafados por horas. Pelo menos 19 dos 40 trens que circulavam na linha foram depredados.

O outro, qualquer outro, tornou-se inimigo e competidor por um lugar no trem que nos engole e nos cospe em seu vaivém automático
Os protestos de junho de 2013 começaram por causa das tarifas do transporte público, em São Paulo os 20 centavos de aumento da passagem. Naquele momento, milhares romperam o imobilismo, no concreto e no simbólico, e passaram a andar por cidades em que não se andava, vidas consumidas em ônibus e metrôs superlotados. O aumento de 20 centavos foi cancelado, mas o péssimo transporte público continuou mastigando o tempo, desumanizando gente. Basta parar para esperar o trem nos horários de pico para ser empurrado, xingado, odiado. O outro, qualquer outro, tornou-se nosso inimigo e nosso competidor por um lugar no trem que nos engole e nos cospe em seu vaivém automático. Somos passageiros que não passam, e a tensão dessa impossibilidade cotidiana pode ser apalpada. A violência é gestada como uma promessa para o segundo seguinte.

Então o louco vai lá e empurra a mulher sobre os trilhos. Rompe o imobilismo e empurra aquela que espera. Porque é louco. Caso isolado, nenhuma conexão com nada, desconexo é o seu discurso, fora da história é o seu gesto, a insanidade é só dele. Basta eliminá-lo, tirá-lo de circulação, para que a sociedade brasileira volte a ser sã. E o metrô de São Paulo um espaço de convivência agradável e pacífico, marcado pela cordialidade.

Talvez estejamos todos não loucos, mas no lugar do louco. Já não nos subjetivamos, tudo é literal. Nos mínimos atos do cotidiano nos falta a palavra que pode mediar a ação, interromper o gesto de violência antes que se complete. Mas talvez estejamos no lugar do louco especialmente porque nem escutamos, nem somos escutados. E quem não é escutado vai perdendo a capacidade de dizer. Só resta então a violência.

Reprimir os protestos é uma forma brutal de não escutar o que dizem aqueles que ainda se preocupam em dizer
Os protestos iniciados em junho pelos 20 centavos e agora centrados na Copa do Mundo são um dizer. Responder a eles com repressão – seja da polícia no espaço público, seja em projetos de lei que transformam manifestantes em terroristas, seja anunciando que o Exército vai para as ruas em tempos de democracia – é uma forma brutal de não escutar aqueles que ainda se preocupam em dizer. É talvez a maior violência de todas.

É preciso ser muito surdo para acreditar que prender todos, “deter para averiguação”, criminalizar manifestantes é suficiente para voltarmos a ser o Brasil cordial e contente que nunca existiu, 200 milhões em ação torcendo pela seleção canarinha. Que o dizer de quem deseja um Brasil diferente seja hoje expressado no campo simbólico do futebol é mais uma razão para escutá-lo, ao mostrar que estamos diante de novas construções do imaginário.

Escutem o louco. Para não colocar aqueles que protestam no lugar do louco, no lugar daquele que não é escutado porque não teria nada a dizer. E depois surpreenderem-se com a resposta violenta, convencendo-se de que não têm nada a ver com isso.

Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção Coluna Prestes, o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua e A Menina Quebrada e do romance Uma Duas. Email: elianebrum@uol.com.br. Twitter: @brumelianebrum