12 novembro 2011

A tinta vermelha

Discurso do filósofo esloveno Slavoj Zizek na manifestação em Wall Street.


A TINTA VERMELHA
por Slavoj Zizek



Não se apaixonem por si mesmos, nem pelo momento agradável que estamos tendo aqui. Carnavais custam muito pouco – o verdadeiro teste de seu valor é o que permanece no dia seguinte, ou a maneira como nossa vida normal e cotidiana será modificada. Apaixone-se pelo trabalho duro e paciente – somos o início, não o fim. Nossa mensagem básica é: o tabu já foi rompido, não vivemos no melhor mundo possível, temos a permissão e a obrigação de pensar em alternativas. Há um longo caminho pela frente, e em pouco tempo teremos de enfrentar questões realmente difíceis – questões não sobre aquilo que não queremos, mas sobre aquilo que QUEREMOS. Qual organização social pode substituir o capitalismo vigente? De quais tipos de líderes nós precisamos? As alternativas do século XX obviamente não servem.

Então não culpe o povo e suas atitudes: o problema não é a corrupção ou a ganância, mas o sistema que nos incita a sermos corruptos. A solução não é o lema “Main Street, not Wall Street”, mas sim mudar o sistema em que a Main Street não funciona sem o Wall Street. Tenham cuidado não só com os inimigos, mas também com falsos amigos que fingem nos apoiar e já fazem de tudo para diluir nosso protesto. Da mesma maneira que compramos café sem cafeína, cerveja sem álcool e sorvete sem gordura, eles tentarão transformar isto aqui em um protesto moral inofensivo. Mas a razão de estarmos reunidos é o fato de já termos tido o bastante de um mundo onde reciclar latas de Coca-Cola, dar alguns dólares para a caridade ou comprar um cappuccino da Starbucks que tem 1% da renda revertida para problemas do Terceiro Mundo é o suficiente para nos fazer sentir bem. Depois de terceirizar o trabalho, depois de terceirizar a tortura, depois que as agências matrimoniais começaram a terceirizar até nossos encontros, é que percebemos que, há muito tempo, também permitimos que nossos engajamentos políticos sejam terceirizados – mas agora nós os queremos de volta.


Dirão que somos “não americanos”. Mas quando fundamentalistas conservadores nos disserem que os Estados Unidos são uma nação cristã, lembrem-se do que é o Cristianismo: o Espírito Santo, a comunidade livre e igualitária de fiéis unidos pelo amor. Nós, aqui, somos o Espírito Santo, enquanto em Wall Street eles são pagãos que adoram falsos ídolos.


Dirão que somos violentos, que nossa linguagem é violenta, referindo-se à ocupação e assim por diante. Sim, somos violentos, mas somente no mesmo sentido em que Mahatma Gandhi foi violento. Somos violentos porque queremos dar um basta no modo como as coisas andam – mas o que significa essa violência puramente simbólica quando comparada à violência necessária para sustentar o funcionamento constante do sistema capitalista global?


Seremos chamados de perdedores – mas os verdadeiros perdedores não estariam lá em Wall Street, os que se safaram com a ajuda de centenas de bilhões do nosso dinheiro? Vocês são chamados de socialistas, mas nos Estados Unidos já existe o socialismo para os ricos. Eles dirão que vocês não respeitam a propriedade privada, mas as especulações de Wall Street que levaram à queda de 2008 foram mais responsáveis pela extinção de propriedades privadas obtidas a duras penas do que se estivéssemos destruindo-as agora, dia e noite – pense nas centenas de casas hipotecadas…


Nós não somos comunistas, se o comunismo significa o sistema que merecidamente entrou em colapso em 1990 – e lembrem-se de que os comunistas que ainda detêm o poder atualmente governam o mais implacável dos capitalismos (na China). O sucesso do capitalismo chinês liderado pelo comunismo é um sinal abominável de que o casamento entre o capitalismo e a democracia está próximo do divórcio. Nós somos comunistas em um sentido apenas: nós nos importamos com os bens comuns – os da natureza, do conhecimento – que estão ameaçados pelo sistema.


Eles dirão que vocês estão sonhando, mas os verdadeiros sonhadores são os que pensam que as coisas podem continuar sendo o que são por um tempo indefinido, assim como ocorre com as mudanças cosméticas. Nós não estamos sonhando; nós acordamos de um sonho que está se transformando em pesadelo. Não estamos destruindo nada; somos apenas testemunhas de como o sistema está gradualmente destruindo a si próprio. Todos nós conhecemos a cena clássica dos desenhos animados: o gato chega à beira do precipício e continua caminhando, ignorando o fato de que não há chão sob suas patas; ele só começa a cair quando olha para baixo e vê o abismo. O que estamos fazendo é simplesmente levar os que estão no poder a olhar para baixo…


Então, a mudança é realmente possível? Hoje, o possível e o impossível são dispostos de maneira estranha. Nos domínios da liberdade pessoal e da tecnologia científica, o impossível está se tornando cada vez mais possível (ou pelo menos é o que nos dizem): “nada é impossível”, podemos ter sexo em suas mais perversas variações; arquivos inteiros de músicas, filmes e seriados de TV estão disponíveis para download; a viagem espacial está à venda para quem tiver dinheiro; podemos melhorar nossas habilidades físicas e psíquicas por meio de intervenções no genoma, e até mesmo realizar o sonho tecnognóstico de atingir a imortalidade transformando nossa identidade em um programa de computador. Por outro lado, no domínio das relações econômicas e sociais, somos bombardeados o tempo todo por um discurso do “você não pode” se envolver em atos políticos coletivos (que necessariamente terminam no terror totalitário), ou aderir ao antigo Estado de bem-estar social (ele nos transforma em não competitivos e leva à crise econômica), ou se isolar do mercado global etc. Quando medidas de austeridade são impostas, dizem-nos repetidas vezes que se trata apenas do que tem de ser feito. Quem sabe não chegou a hora de inverter as coordenadas do que é possível e impossível? Quem sabe não podemos ter mais solidariedade e assistência médica, já que não somos imortais?


Em meados de abril de 2011, a mídia revelou que o governo chinês havia proibido a exibição, em cinemas e na TV, de filmes que falassem de viagens no tempo e histórias paralelas, argumentando que elas trazem frivolidade para questões históricas sérias – até mesmo a fuga fictícia para uma realidade alternativa é considerada perigosa demais. Nós, do mundo Ocidental liberal, não precisamos de uma proibição tão explícita: a ideologia exerce poder material suficiente para evitar que narrativas históricas alternativas sejam interpretadas com o mínimo de seriedade. Para nós é fácil imaginar o fim do mundo – vide os inúmeros filmes apocalípticos –, mas não o fim do capitalismo.

Em uma velha piada da antiga República Democrática Alemã, um trabalhador alemão consegue um emprego na Sibéria; sabendo que todas as suas correspondências serão lidas pelos censores, ele diz para os amigos: “Vamos combinar um código: se vocês receberem uma carta minha escrita com tinta azul, ela é verdadeira; se a tinta for vermelha, é falsa”. Depois de um mês, os amigos receberam a primeira carta, escrita em azul: “Tudo é uma maravilha por aqui: os estoques estão cheios, a comida é abundante, os apartamentos são amplos e aquecidos, os cinemas exibem filmes ocidentais, há mulheres lindas prontas para um romance – a única coisa que não temos é tinta vermelha.” E essa situação, não é a mesma que vivemos até hoje? Temos toda a liberdade que desejamos – a única coisa que falta é a “tinta vermelha”: nós nos “sentimos livres” porque somos desprovidos da linguagem para articular nossa falta de liberdade. O que a falta de tinta vermelha significa é que, hoje, todos os principais termos que usamos para designar o conflito atual – “guerra ao terror”, “democracia e liberdade”, “direitos humanos” etc. etc. – são termos FALSOS que mistificam nossa percepção da situação em vez de permitir que pensemos nela. Você, que está aqui presente, está dando a todos nós tinta vermelha.

09 novembro 2011

A morte do cinegrafista da Band e os fatos na USP estão ligados


A morte do cinegrafista da Band e os fatos na USP estão ligados

por Rafael Moya, novembro de 2011.

“Aqueles que abrem mão da liberdade essencial por um pouco de segurança temporária não merecem nem liberdade nem segurança.” (Benjamin Franklin)

Mais uma vez a elite brasileira demonstra como sabe controlar o Brasil. Esses dias a morte do cinegrafista da Band e os fatos na USP têm me incomodado muito. E creio que ambos estão intimamente ligados. Senão vejamos.

Faz tempo que a elite brasileira quer intervir policialescamente na USP, em outras universidades, e em todos os espaços onde se têm formado lideranças que colocam em xeque as políticas implementadas no país. Como as tentativas de cooptação do movimento estudantil, via União Nacional dos Estudantes (UNE), não surtiram efeito na base das universidades públicas, como o processo de desmonte destas Universidades vem sendo combatido pelos estudantes, funcionários e parcos (mais valorosos) professores, a tática mudou. Agora é por a polícia militar no Campus.

Com a justificativa de combater a violência no campus - violência esta muito abaixo dos índices de criminalidade vistos na cidade de São Paulo – o governador Geraldo Alckmin (PSDB) e o reitor João Grandino Rodas (ex-diretor da Faculdade de Direito e que não foi o mais votado pela comunidade acadêmica mesmo assim sendo escolhido pelo então governado José Serra (PSDB)) não perderam a chance de por em prática o que já sonhavam faz tempo, o controle policial ostensivo principalmente nas Faculdades “subversivas”, aquelas onde estão os “vagabundos e maconheiros”. Aliás, isso me faz lembrar uma música do Cazuza:

“Me chamam de ladrão, de bicha e maconheiro,
transformam o país inteiro num puteiro,
pois assim se ganha mais dinheiro”

É justo que a grande maioria dos estudantes reivindiquem segurança no campus. Mas é só observarmos a realidade (não apenas pelos óculos da grande mídia), que notaremos que o policiamento ostensivo puro e simples não resolve o problema da violência. A USP não conta sequer com iluminação adequada. Vejam bem, uma coisa é a violência de assalto e estupros, outra coisa é o uso de drogas (lícitas ou ilícitas) no campus, pois isso é um outro debate. Qual foi a primeira ação da PM nesse novo estado de “paz” dentro da USP? Prendeu algum “crápula, terrível, brutal, monstruoso, bandido”? Evitou um estupro ou homicídio? Não. Prendeu alguns estudantes que fumavam seus cigarros de maconha. Está certo? Talvez, pois assim diz a lei. Mas e os “bandidos”?

A universidade moderna tem como base a idéia de autonomia do saber ante a religião e o Estado. Elementos esses que contribuiriam para uma produção e difusão do saber livre. Assim o que está em jogo é muito mais do que “o desejo de meia dúzia de maconheiros de fazerem o que querem na universidade”, o que está em jogo é a liberdade de expressão, de pensamento. E isso não é perfumaria! 

Nossa Constituição Federal, no art. 207, define características fundamentais da autonomia universitária. Entre elas está a autonomia administrativa, ou seja, inclusive quanto sua segurança. Segundo o Prof. José Luiz Quadros Magalhães, em sua tese de doutorado na UFMG: “A autonomia universitária (...) tem características especiais que fazem com que possamos classificá-las como autonomias de garantia de democracia ao lado do Ministério Público.” Portanto essa norma “desvincula” a universidade do governo, permitindo que ela permaneça produzindo de forma livre o saber plural, distante de eventuais interferências diretas ou indiretas, mais ou menos autoritárias. Mas os fatos me remetem a outra música, agora é Legião Urbana:

“Ninguém respeita a constituição,
mas todos acreditam no futuro da nação,
Que país é esse?”

Mas o que isso tem a ver com a morte do cinegrafista da Bandeirantes? Ambos os fatos remetem a uma corrosão da nossa democracia. Com a morte do cinegrafista (onde inclusive o sindicato dos jornalistas está questionando a qualidade do colete a prova de balas que ele usava), a imprensa está bradando aos quatro ventos mais repressão aos bandidos, dureza das ações, força, pólvora, sangue etc.! Ao mesmo tempo vi na imprensa um policial militar de alta patente dizendo que “isso é para vermos que em alguns lugares a imprensa não pode entrar. É muito perigoso.” Ou seja, ninguém precisa saber o que acontece em alguns lugares. Principalmente se for na favela, com os sem-direitos, sem-dignidade.

Tenho observado princípios democráticos sendo corroídos a olho nu. O mais curioso, e dramático, é que isso é perpetrado por setores que, independente das profundas divergências políticas, valem-se desta democracia que eles ajudam a empurrar ao precipício. Sejam os políticos “eleitos”, seja a imprensa “livre”. É um tiro no pé, no deles e principalmente, no nosso.

Mais uma vez a elite brasileira faz escola. Eles não permitirão no Brasil uma Grécia, um Egito ou um Chile. Caso a crise que se abate sobre boa parte do mundo chegue aqui, as coisas já estarão devidamente “pacificadas”.

Não podemos ser coniventes.